domingo, 23 de fevereiro de 2014

O NASCIMENTO DO ESTADO MODERNO



I. As origens do Estado Moderno: o renascimento do comércio e da vida urbana através dos burgos, das feiras e das rotas comerciais



        O cenário da Alta Idade Média – dos séculos V ao X – é o de uma Europa rural, fragmentada em pequenos feudos autônomos, autossuficientes, com baixa produtividade. A regra na Europa medieval é a fome e o medo, não há a possibilidade de refeições diárias, e o risco de ataques bárbaros é uma constante. O deslocamento entre feudos é muito arriscado, e a atividade comercial praticamente desaparece.  A Europa medieval configura-se em um continente cultural e tecnicamente atrasado.


A produção de alimentos era muito baixa devido às rudimentares técnicas e aos precários instrumentos agrícolas do período, limitando o aproveitamento da terra. E como havia um isolamento muito grande entre as regiões, a convivência social e a troca de informações eram mínimas. As técnicas da produção agrícola não se desenvolviam. Outro fator de limitava o desenvolvimento da produção era a ausência da palavra escrita para a transmissão e aprimoramento dos conhecimentos técnicos.



O isolamento da sociedade medieval foi uma consequência da ruralização gerada pela economia agrícola.
       A sociedade se apresenta imóvel, dividida em estamentos estáticos (clero, nobreza, campesinato), com suas respectivas funções (oração, guerra, trabalho). Esse sistema de castas fixas, sem nenhum mecanismo de ascensão social, é justificado pela Igreja como um “ordenamento sagrado”: os homens já nasciam predestinados a cumprir um determinado papel social. Na prática, a posição na estrutura social é determinada pela posse da terra, que não podia ser comprada, apenas herdada, segundo os princípios da tradição e da primogenitura (o filho mais velho herda a terra).


O trabalho agrícola era a principal atividade econômica, sendo os trabalhadores (servos, camponeses, artesãos) os encarregados das atividades manuais necessárias ao sustento da nobreza e do clero. O controle da fé e das armas garantia à Igreja e à nobreza o domínio dos demais grupos. As relações de vassalagem, típicas do sistema feudal, tinham como base a fidelidade e a dependência mútua: o senhor feudal dependia do trabalho e dos impostos pagos pelos seus vassalos e servos, e esses últimos dependiam do uso da terra e da proteção militar do senhor feudal a quem haviam prestado o juramento de fidelidade (investidura).



A mão de obra servil foi a base da produção agrícola medieval.


      A organização política descentralizada, característica do período, transfere os poderes do Estado para a pessoa física. Os senhores feudais cumprem o papel do Estado: a queda de Roma simboliza o desaparecimento físico do Estado, a transferência do poder de Estado para uma pessoa.

     Nos últimos anos de existência do Império romano, surgiu a prática que viria a ser a origem do feudalismo: a instituição da imunidade. A imunidade era uma concessão do Estado romano aos patrícios (elite romana); esse instrumento fornecia poderes totais ao patrício nos seus domínios, ele ficava responsável pela segurança e pela cobrança dos impostos, que posteriormente deveriam ser repassados a Roma. A queda de Roma e a instituição da imunidade são os principais responsáveis por essa transferência de poder do Estado para a pessoa física do Senhor Feudal durante a Idade Média.

     O comércio e a vida urbana, que praticamente haviam desaparecido na Europa medieval, foram – em um processo lento – ressurgindo a partir do século XI. Esse renascimento foi consequência do crescimento demográfico, da diminuição das invasões (vikings, muçulmanos, húngaros) e, principalmente, do intercambio cultural com o oriente. Esse novo quadro possibilitou a circulação de mercadorias na Europa medieval. Os séculos XII-XIII serão marcados também pelo reaparecimento da moeda e pela ampliação das feiras e rotas comerciais.


       O mar utilizado para o comércio marítimo era o Mediterrâneo; o oceano Pacífico ainda não era navegado pelos europeus. As cruzadas “abriram” o Mediterrâneo e retiraram dos muçulmanos o domínio exclusivo das suas margens. Não só mercadorias entraram pelo Mediterrâneo, mas a Peste Negra também. A Peste Negra foi trazida do oriente através de um navio mercante genovês contaminado. A epidemia era altamente contagiosa, transmitida por meio da picada da pulga de ratos portadores do bacilo, ou simplesmente pelo hálito. Na época, não era conhecido nenhum remédio ou tratamento eficaz para combatê-la. Mais de um terço da população europeia morreu em apenas três anos, entre 1347 e 1350. A Peste serviu para desacreditar a ideologia católica e mostrar a necessidade de aprimoramento científico e técnico, colaborando, ainda, com o despovoamento dos campos e a decadência do feudalismo.


Peste Negra: a maior epidemia da história

O que alterou o quadro da Alta Idade Média, incapaz de gerar excedente que permitisse a realização do comércio, foi o contato da Europa com uma civilização cultural e tecnicamente superior a ela naquele momento: a civilização árabe. Esse contato se deu de duas formas: através da invasão moura da Península Ibérica, em 711, resultado da expansão muçulmana, e das cruzadas medievais, resposta da cristandade à ocupação dos lugares sagrados pelo islamismo. O resultado desse contato, forçado ou não, foi o aumento da produção agrícola na Europa devido à introdução de novas técnicas e novos instrumentos pelos árabes.


A partir das novas técnicas (sistema de três campos, rodízio de culturas, moagem do grão em moinhos de vento ou d’água) e instrumentos (arado de ferro, coalheira), pela primeira vez a Europa medieval produz excedente de alimentos, o que gera a volta do comércio terrestre e da vida urbana, através dos burgos. As feiras de troca são o elo entre a ausência de comércio e os burgos. Esse novo contexto gera novas classes sociais, como a burguesia, responsável pela atividade comercial e a administração dos burgos, e os ofícios, pelos serviços manuais. Gera também uma maior necessidade de segurança para que os burgueses possam realizar o comércio.


O renascimento das cidades é um acontecimento intrinsecamente vinculado à volta do comércio. As cidades medievais, que por terem nascido em torno dos muros de antigos castelos feudais receberam a denominação de burgos, eram cidades fortificadas onde se realizava o comércio terrestre europeu antes da expansão marítima, constituindo-se em verdadeiros centros, além de oferecerem serviços, as corporações de ofícios, que prestavam trabalhos manuais: artesãos, sapateiros, marceneiros, ferreiros, alfaiates. A origem dos burgos são as feiras de trocas que, a partir do século IX, reiniciaram a atividade comercial na Europa.



Os burgos medievais são a origem da maioria das grande cidades europeias atuais. 



O comércio era considerado um pecado, o chamado pecado da usura, pois o homem deveria ganhar o pão com o suor do seu rosto e não com o “lucro fácil” obtido pela compra e venda de mercadorias.


A insegurança era a regra para quem se arriscava a fazer o comércio terrestre na Europa do século XIV; dentro de um feudo ou de um burgo havia segurança, mas nos deslocamentos, devido à ausência de um poder central e da existência de grupos que viviam de assaltos, a insegurança era total. Por isso, os burgueses defendiam a necessidade da formação de Estados Nacionais, com um poder centralizado que formasse um exército nacional e garantisse a segurança pública.



II. A Aliança rei-burguesia: o Estado em nome do comércio, o rei em nome do Estado



O ressurgimento do comércio no plano econômico forçou o surgimento do estado moderno no plano político, pois a estrutura do sistema feudal dificultava a circulação das mercadorias. A centralização do poder foi instrumentalizada nas monarquias nacionais, mas esse fenômeno foi forçado pela ascensão da burguesia e pela importância que adquiriu a atividade comercial no decorrer da Baixa Idade Média. Esse comércio gerador da modernidade teria seu ápice nas Grandes Descobertas Marítimas, na formação da rota para as Índias e na descoberta de novos continentes.


A burguesia precisava de algo maior, que garantisse a sua segurança nos deslocamentos necessários para a prática do comércio terrestre. Havia também a necessidade de concentrar os impostos a fim de investir na navegação. A realização das Grandes Navegações era um investimento alto e arriscado demais para apenas um burguês ou uma associação (Hansa). Havia, enfim, a necessidade de existência do Estado, um Estado com o poder centralizado. O critério usado para viabilizar o Estado seria a tradição, ou seja, a ideia de rei. O rei concentraria os impostos e investiria na navegação e na formação de um exército nacional. É justamente por essas necessidades e interesses que se dá à aliança formadora do Estado moderno, a aliança rei-burguesia.


As grandes descobertas marítimas dos séculos XV e XVI, responsáveis pela descoberta da América, da costa da África e do extremo oriente, foram um fruto do Estado moderno. A expansão europeia do início da Idade Moderna foi motivada pelo desejo da burguesia de ampliar a sua atividade econômica e pela vontade da Igreja de expandir a fé católica no “novo mundo”, catequizando os nativos da América, da África e da Ásia.



O Caminho das Índias: a revolucionária rota marítima criada por Portugal


Portugal foi o pioneiro das grandes navegações marítimas por vários motivos: a sua privilegiada posição geográfica (banhado pelo oceano Atlântico), sua precoce centralização política, a ascensão da sua burguesia mercantil aliada à Dinastia de Avis e a existência da Escola de Sagres. A Escola de Sagres era a única escola de navegação da Europa moderna, uma escola dedicada à formação de navegadores e ao desenvolvimento das técnicas de navegação.


No início da Idade Moderna, o Atlântico era praticamente desconhecido, pois, devido aos riscos, a sua exploração não atraía investimentos particulares. A expansão para esse oceano foi uma iniciativa do Estado português, único agente capaz de investir grandes recursos – provenientes da arrecadação de impostos em escala nacional – e assimilar possíveis prejuízos. Por isso, a importância da precoce centralização política de Portugal, enquanto os demais países europeus viviam o modelo típico de feudalismo, para seu pioneirismo na expansão ultramarina. Os Senhores Feudais ibéricos, visando a garantir as conquistas territoriais da retomada cristã, abdicam do seu poder local e transferem poder ao rei de Borgonha, utilizando a tradição como elemento de criação da nacionalidade.

            
   
A nobreza medieval se manteve como elite nos Estados Modernos, uma elite ligada a guerra ou a terra.

        Embora tivesse sua origem ligada aos interesses mercantis, sendo uma aspiração e uma construção da burguesia, o Estado moderno não rompeu com a nobreza, na medida em que manteve os seus privilégios. Essa aparente contradição é explicada pela impossibilidade burguesa de se impor como casta dominante no período, em um mundo em que os valores vigentes eram da nobreza (tradição, terra, religião, guerra) e sua atividade era considerada pecado (usura). À burguesia resta garantir a realização do comercio e a segurança do seu patrimônio e da sua vida. O rei poderia fornecer a garantia da manutenção das suas propriedades, o que não acontecia no mundo feudal, no qual as cidades burguesas, principalmente as judiarias e as mourarias, eram constantemente invadidas aos gritos de ‘conversão ou morte’.


        Concomitante ao crescimento dos burgueses, das cidades e do comércio, ocorreu uma crise no campo, que teve como consequência o desmoronamento das relações servis, o enfraquecimento dos Senhores Feudais e a possibilidade de centralizar o poder na figura real. A centralização só foi possível porque ocorreu o enfraquecimento da nobreza feudal e dos seus exércitos particulares.



III. Idioma comum, território definido, soberania real e exército permanente: o Estado moderno apresenta suas armas



A Idade moderna é caracterizada como a transição do feudalismo para o capitalismo, transição iniciada com a expansão comercial, a partir do século XI, quando a terra foi deixando de ser a única fonte de riqueza, desestruturando o sistema feudal. Enquanto isso, a burguesia adquiria crescente riqueza e buscava ampliar seus lucros através de uma nova organização política, sem as constantes guerras promovidas pela nobreza feudal, sem as inúmeras moedas regionais e sem os incontáveis impostos individualmente cobrados pelos senhores feudais, todos esses fatores que atrapalhavam a realização do comércio. A solução encontrada foi fortalecer a autoridade do rei, através da formação das monarquias nacionais.


O processo histórico que levou ao surgimento do Estado moderno com governos nacionais centralizados representa, ao mesmo tempo, uma oposição aos regionalismos dos feudos (imunidade) e ao universalismo da Igreja católica (ideia de cristandade ocidental). O estado moderno caracteriza-se pela ideia de idioma comum, território definido, soberania real (no lugar da suserania medieval) e exército permanente.



 Maquiavel, precursor da teoria política do Estado Moderno e principal teórico do absolutismo, pregou a construção de um Estado forte, laico, dirigido de forma absolutista por um príncipe dotado de inteligência e de uma moral própria, individual, e não uma moral pública: “o homem que queira em tudo agir como bom acabará arruinando-se em meio a tantos que não são bons. Daí porque o príncipe deve aprender a não ser bom”.



        A Monarquia Absolutista, concentração dos poderes do Estado nas mãos do Rei, tinha sua legitimidade baseada no Direito Divino dos Reis. A Igreja católica defendia a ideia de que o rei havia sido “tocado por Deus”, escolhido por Deus para ser o seu representante aqui na terra, por isso a sua figura era sagrada; por isso ele tinha o “direito divino” de ser rei. Na época, acreditava-se, inclusive, que os reis faziam curas e milagres.


    O Estado Absolutista Moderno finaliza o feudalismo e permite a acumulação de capital, a partir das práticas mercantilistas, geradoras do sistema capitalista. O absolutismo estabelece a nobreza como classe privilegiada e os seus valores como os valores hegemônicos da sociedade absolutista, mas, ao mesmo tempo, favorece economicamente a burguesia, pois a ela era destinado pelo monarca o monopólio da atividade mais lucrativa da época, o comércio marítimo. O monarca determinava, além das questões econômicas, as questões militares, política e religiosas, concentrando em suas mãos todo o poder do reino (“O Estado sou eu!”).



O comércio triangular do mercantilismo moderno


            Na mesma medida que a centralização favoreceu o estabelecimento das práticas mercantilistas, a montagem do antigo sistema colonial e o acumulo de capitais da burguesia mercantil; as grandes descobertas marítimas – ampliação do comércio – e o imperialismo europeu do século XVI, com a anexação e o domínio de novos territórios para a exploração de recursos naturais e a instalação de entrepostos comerciais na costa da África, América e extremo oriente, ampliou mercantilismo europeu ao torná-lo mundial. O grande crescimento econômico da Europa ocorreu devido à possibilidade de realizar o chamado comércio triangular, entre América, África e Ásia. Outro fator positivo para a economia europeia foi a entrada de metais preciosos no continente, permitindo o acúmulo de riquezas e cunhagem de moedas nacionais.

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